quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Menina que Veio Lá de Cima - Capítulo Um

O onibus balancava tanto que eu nao conseguia ler. Irritada, fechei o livro e os olhos, recostando a cabeça no banco.

O dia havia sido cheio e cansativo, como todos os outros. Ficar dentro do ônibus por duas horas para voltar para casa só era suportável quando eu conseguia ler. Ler fazia o tempo passar mais rápido. Quando não conseguia, ficava com aquela angustiante sensação de perda de tempo. Duas horas sentanda - nos dias de sorte - sem fazer nada, olhando para os lados, para as pessoas perdidas em seus pensamentos, ou pelas janelas para a paisagem nada interessante.

Também não gostava de dormir no ônibus. A cabeça batendo no vidro, ou a saliva escorrendo no meu vestido nunca era algo agradável. Mas eu estava exausta e o trânsito parecia mais lento que o de costume, então tentei relaxar e, ao menos, levar minha mente para longe dali. Em pouco tempo estava me vendo em minha ilha favorita, tomando um pouco de banho de sol.

A ilha não existe, claro. Desde 
aquele dia eu uso essa técnica de "fuga mental". Quando não consigo dormir e nada à minha volta me atrai nem distrai, apenas esses pensamentos e livros me proporcionam uma fuga para esquecer o passado.

Foi quando ouvi a música. Eu já estava quase pegando no sono, por isso a principio achei que fizesse parte do cenário imaginário. Eu não sabia o que era, mas o som era tão agradável e real que abri os olhos esperando que não acabasse. Então eu a vi, a dona daquela voz. Estava sentada ao meu lado e era a garotinha mais linda que me lembro de ter visto. Devia ter uns seis ou sete anos; ruiva, cabelos cacheados, olhos verdes claros, sardas no rosto, vestidinho branco. Mas não era isso que a deixava tão linda. Talvez fosse seu sorriso, mas me arrisco a dizer que era algo mais 
interno. Talvez seu estado de espírito. Sua alma. Ela irradiava alegria.

Estava errada quando disse que era a garotinha mais linda que já vi. Seria mais correto dizer que era a garotinha mais alegre e inocente que já vi.

Ela continuava a cantar docemente:

*Passe pra adiante cego
Passe pra adiante aninha
Eu sou um pobre cego
Não enxergo o caminho

Virei um pouco para a direção dela, encostei a cabeça e fiquei olhando para ela, como se eu fosse a criança e ela uma artista. De fato, ela me fez afastar da realidade, e todo meu cansaço e indisposição desapareceram. Era melhor do que ler ou dormir. Ela parecia não se importar com a audiência, e continuou:

Já larguei a roca
Já larguei meu linho
Passe pra adiante cego
Siga o seu caminho

Quando ela procunciou "cego", sua expressão mudou ligeiramente. Seu sorriso não se desfez, nem seu olhar se desviou. Mas, como eu analisava cada centímeto daquele rosto perfeito, notei músculos relaxando e as palpebras descendo lentamente, dando a impressão de um breve esboço de tristeza. Ela continuou:

Se me fiz de cego
Foi porque queria
Sou filho de rei
Tenho bizarria

Então eu percebi. Como fui estúpida! Não é que ela não se importava com meu olhar fixo. Ela não estava com o olhar fixo por estar concentrada e não era a toa que cantava aquela canção. Ela era cega.

Eu não fiquei chocada, mas indignada. Como era possível que uma menininha tão linda e tão novinha fosse privada de enxergar? Achei injusto e quis sair dali para não pensar em como ela se sentia. Então ela sorriu de novo, mais radiante do que antes; quase rindo. De fato, deu uma leve risadinha. Se virou para minha direção com seus olhos vazios e perdidos, sorrindo e disse:

"Desculpa. Eu queria te animar um pouco, mas acho que escolhi a musica errada"

Fique tão surpresa que não consegui falar de imediato. Ela sabia com quem estava falando? Olhei para as pessoas em pé no corredor do ônibus, procurando por sua mãe ou acompanhante, mas ninguem olhava para nós. Além do mais, por que ela queria me animar? O que ela quis dizer com isso? Ela continuava virada em minha direção, esperando uma responsta.

- Não - respondi, hesitante - eu adorei.

Ela então deu alguns risinhos tímidos mostrando a falta de um dente da frente e baixou um pouco a cabeça, juntando as maozinhas sobre o colo. Por alguma razão, a achei ainda mais linda.

- E onde estão seus pais? -perguntei

Seu sorriso diminuiu um pouco, mas respondeu prontamente, ainda um pouco cabisbaixa:

- Eu não sei. Eu perdi eles.

- Como assim? Você esté perdida desde quando?

- Eu não estou perdida - pela primeira vez, o sorriso desapareceu do seu rosto, dando lugar a uma expressão de raiva e indignação, como se eu tivesse dito uma grande e ofensiva bobagem - Eles é que se perderam de mim.

- E quando foi isso? Dentro deste ônibus? Antes de você entrar? Precisamos encontrá-los. Eu te ajudo, tá?

- Você é engraçada, moça - quase tive a sensação de que ela podia olhar nos meus olhos - Na verdade, eu não lembro direito. A última vez que os vi, estava chovendo.

- Então você ainda podia ver?

- Claro, sua boba. Porque eu não poderia?

Ela ria como se eu tivesse dito algo absurdo. Balancei a mão na frente dela, dizendo:

- Mas... você não pode me ver, não é?

- Claro que eu te vejo - disse rindo ainda mais.

- E como eu sou?

- Você é loira, tem olhos azuis e pele branca.

Senti um aperto no peito. Eu tinha cabelos pretos na época, meus olhos são castanhos e sempre tive a pele queimada pelo sol. Mas tive um choque quando ela disse:

- E você é muito infeliz.

Fiquei sem reação alguma. Aquela palavra, "infeliz", invadiu meu espírito. Me descrevia melhor do que qualquer descrição física.

- Viu como eu posso te ver?

Aquele sorrizinho sapeca me faria ter raiva naquela hora se eu já não a amasse tanto. E nem sequer imaginava o quanto ainda a amaria em breve. Amaria de fazer doer o peito.




*Nota da Autora - essa é uma das canções de roda que minha avó cantava quando criança e depois de idosa, sua segunda infância, quando cuidava de mim ^^

1 comentários:

Naty Sodré disse...

quee bom que vc ta de volta! ameei essa história, essa menina, parece conhecer mais a adulta do que a própria adulta, e ainda por cima cega, aaah, quero saber o que vai aconteceer *-* quero saber aonde os pais dela estãão haha, maal posso esperar para o cap 2! bjs flooor, estava com saudades de ver vc por aqui :D

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